::quarta-feira, dezembro 28, 2005

A chuva

Não estava propriamente a ser apanhado de surpresa. Já sabia que mais tarde ou mais cedo aquilo havia de acontecer. Era a época dela, afinal, ou não tivesse o Inverno começado há um ou dois dias. Mas estava a gostar tanto daqueles momentos, da experiência, que se distraíra, e se 'deixara dormir', por assim dizer. De modo que só se apercebeu da sua chegada, quando esta já era iminente, e não com a devida antecedência, como teria preferido.

A seus pés, o cinzento tomava tons progressivamente mais escuros, já totalmente distintos do branco de há alguns dias, e também a própria consistência se deteriorava a olhos vistos (a passos dados, melhor dizendo), contribuíndo para agravar a sua preocupação. Não se considerava perdido, no entanto, e acreditava que ainda ia suficientemente a tempo de minimizar os estragos, ou de, pelo menos, evitar o pior.

Deitou pois mãos à obra, começando por arrancar largos pedaços daquilo sobre o qual assentavam os seus pés. Constatou, animado, que não estava assim tão mau quanto isso. A consistência certa, talvez, que lhe dava tanto a maleabilidade que lhe permitiria trabalhá-lo, como a resistência para se suportar.

Após ter moldado uma trança com o comprimento adequado (a olho nu, pelo menos) - tarefa que lhe consumiu um bom par de horas - dedicou-se a escavar o buraco por onde saíria. Preferia esta solução à alternativa, pois fazia-lhe um pouco de confusão aventurar-se assim pela 'borda fora'. O buraco/túnel sempre lhe dava outra sensação de segurança, de resguardo, por muito ilusória que pudesse ser, até porque, escavando-o na diagonal, podia controlar a descida, pelo menos enquanto não se encontrasse a céu aberto.

Terminado o túnel (que demorou muito menos tempo do que previra a ser escavado, devido à diminuição progressiva da consistência do material), tratou de fazer por ele sair toda a trança, iniciando a sua descida - um autêntico rapel livre - logo de seguida, sendo nisso acompanhado pelas primeiras gotas.

A pouco mais de meio do caminho, quando já se sentia praticamente a salvo, certo de que alcançaria em breve o chão, aumentaram a quantidade e o volume das gotas, e a própria trança começou a desfazer-se. Serviu-lhe de pouco consolo o facto de estar certo em relação à brevidade com que atingiria o solo, e soltou, entre-dentes, um convicto "Mmmmeeeeeeeeeeeeerrrd..."

>CLONC<

- ... e vamos já em directo para o local, onde a nossa repórter Maria Albertina, nos poderá dar todos os pormenores deste insólito incidente. Boa tarde, Maria!
- Boa tarde, José. Insólito é mesmo a palavra correcta para descrever aquilo que aqui se passou esta tarde, na praia do Guincho, onde, segundo testemunhos de alguns transiuntes, um homem, cujo corpo se encontra, aliás, incrustrado nas areias da praia, um homem, como ia dizendo, choveu!
- Um homem choveu, Maria?
- É verdade, parece inacreditável, mas é o que afirmam todas as testemunhas oculares do evento, jurando a pés juntos que este homem, cuja identidade permanece, até ao momento, desconhecida, caíu, aqui, neste local, do céu, com as primeiras chuvas desta tarde, e...
- Qual choveu qual carapuça, cambada de cordeirinhos ignorantes! Eu bem sei o que se passou. Só não percebe quem não quer!
- Parece que afinal existe outra teoria, José, temos aqui um senhor, bastante... animado... como podem perceber...
- Eu sei! A mim não me enganam eles! EU! SEI!
- Sim, diga-nos, senhor... er... o que aconteceu aqui exactamente, na sua opinião?
- Pois que é evidente que isto não é mais que uma execução, desses gajos da CIA e tal, todos uns c@$%@& é o que é, que atiraram este pobre desgraçado dum avião ao sobrevoar a área e...
- Nada disso, nada disso! Eu vi o individuo a descer-se lá de cima, com a ajuda de uma corda, e...
- Mas lá de cima de onde? Tá parva ou quê?
- Vá chamar parva à sua mãe, seu malcriadão!
- A minha mãe? Ora sua p@£$%!
- Tenha tento na língua, olhe que você leva, ouviu?
- Bem, José, vamos ter de interromper por aqui, pois os ânimos estão a ficar um pouco exaltados, e ... AI!

>CLONC<

AI!!! Ai... au... que raio? Bolas... caí outra vez da cama... hummmm... magoei-me a sério, desta vez... caramba. Ai! Hum... mas então e... claro... tava a sonhar... outra vez! Que pena... parecia tão mais real que das outras vezes... já devia saber... ui... será que parti alguma coisa? Hum... isto mexe... isto também... não creio... nada que se veja, pelo menos... mas vou ficar dorido por uns bons tempos, tou mesmo a ver... que horas são isto? JÁ?! Que m£$&@!!! .... Bom... já estou fora da cama, de qualquer maneira, por isso... é pó duche! Por falar nisso... olha o que chove!!! Xiiii... Faz sentido, faz sentido... e já não era sem tempo, também... a ver se passa este frio do caraças... chiça! Chegou para ficar o Inverno, tá visto... vamos... toca a levantar do chão... ui... raisparta...