::segunda-feira, junho 14, 2004

Paco

"Paco era um homem perturbado.
Estava a poucos meses de atingir o objectivo da sua vida, pelo qual tinha lutado árduamente. Uma luta que lhe trouxera muita dor e sofrimento, mas também muitas alegrias. Uma luta à qual havia entregado voluntária e corajosamente, pois sabia que só assim chegaria onde queria e tinha de chegar.

Dentro em breve, e ao fim de anos de uma sangrenta guerra civil que havia devastado tanto o seu país como a ele próprio, Paco iria tornar-se Presidente da República. El Generalíssimo.

Soube desde muito cedo que essa posição lhe estava destinada, tal como o souberam seus pais e seus amigos, que lhe alimentaram o sonho. O conforto, o poder, a glória. E, acima de tudo, a "paternidade": Paco Martinez, o Pai da Nação.

Engrossou as fileiras do Partido (e do exército) Conservador ainda muito jovem, seguindo o exemplo de seu pai e de seus tios, abraçando desde o início a sua causa e os seus ideais com tal fervor e dedicação que logo se fez notar, e rapidamente iniciou uma ascenção meteórica na hierarquia.

Também os seus inimigos, os Liberais, não demoraram muito a conhecer, e a temer, o seu nome. Era um adversário terrível. Um estratega brilhante que, no entanto, nunca abandonva os campos de batalha, lutando sempre ao lado dos homens que comandava.
Também depressa vieram a conhecer a sua nobreza, pois era sempre o primeiro a preocupar-se com o estado de todo e qualquer prisioneiro inimigo, a cuidar para que os seus direitos fundamentais fossem preservados.

Era esta mesma faceta, esta sua humanidade, que lhe permitia manter as amizades da infância até mesmo com aqueles que tinham escolhido o "outro lado", o Liberalismo.
Amigos esses que, numa época de tréguas e de paz relativa, em que o seu destino já parecia assegurado, o convidaram para uma festa do Partido Liberal.
A ideia pareceu-lhe tão descabida que inicialmente a rejeitou por completo, embora admitisse uma certa curiosidade, uma atracção, pelos bailes e festas Liberais, famosos por todo o país pela sua alegria e espontânedade, pelo seu calor humano.

A pressão dos amigos e a curiosidade, no entanto, acabaram por levar a melhor e começou a frequentar as ditas festas. Sempre impecavelmente disfarçado, claro, com cabeleira e barba postiça, entrando e saíndo pela calada, não fosse o Diabo tecê-las. Seria o fim de tudo, se fosse descoberto.
E assim, pouco a pouco, veio a descobrir aquelas gentes, os seus loucos festejos, a sua amizade simples e sincera. E veio a descobrir também o quanto o faziam sentir-se bem: relaxado, tranquilo, sem preocupações.

Nem mesmo quando as labaredas da guerra se reacenderam deixou de participar nos bailes, nas reuniões, nas conversas à volta da mesa. Mais uma vez, a supremacia Conservadora parecia inquestionável e a vitória assegurada, muito graças a si e à sua liderança.

Percebeu, obviamente, e desde o início, que eram situações incompatíveis. E por isso mesmo, de tempos a tempos, tentava parar e abandonar por completo estas escapadelas secretas, verdadeiras traições ao seu Partido de criação. Mas quanto mais tempo se mantinha afastado, quanto mais tempo passava sem ouvir aqueles cânticos, sem sentir aquela energia, com mais facilidade cedia ao impulso de colocar novamente o seu disfarce e voltar aos terreiros e praças Liberais, com uma paixão sempre crescente.

A sua nomeação pelo Partido para o cargo máximo da nação não foi surpresa para ninguém. Estavam reunidas todas as condições para declarar a vitória sobre a oposição, que estava praticamente aniquilada, e à qual restavam apenas alguns pequenos focos de resistência aqui e ali. Era este o seu momento. Estava na força da idade e tudo com que sempre havia sonhado iria finalmente tornar-se realidade.

Perturbava-o, contudo, que a tão pouco tempo desse momento de glória, não só para si como para todo o Partido Conservador, ardesse no seu coração uma chama Liberal. Por muito pequena que fosse.
O seu melhor amigo - um Liberal, por ironia do destino - que muito tinha contribuído para a atear, questionava a sua decisão de avançar para o cargo, os seus motivos, a sua real dedicação à causa Conservadora.
A este chegou a dizer, em certo momento: 'É este o caminho que me está destinado e que eu quero seguir, sim. Hoje e desde sempre. Mas amanhã... isso ninguém sabe.' E para o amigo estas palavras, se não traíam toda a certeza que dizia possuír, minavam com certeza as fundações do compromisso que iria assumir perante o seu Partido, ao questionarem o seu futuro.

Tornou-se uma presença incómoda, o amigo. Inconviniente. A pressão constante para que abandonasse o partido, reconsiderasse a nomeação ou para que, pelo menos, refletisse mais um pouco, irritavam-no.
Sabia bem o que queria. Não podia desistir. Tinha de realizar o seu sonho e sacrificaria o que fosse preciso. Não tinha chegado tão longe para deitar tudo a perder, muito menos por algo que não conseguia, nem queria, sequer definir.

Tinha de tomar uma decisão."

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