::quarta-feira, junho 15, 2005

Um ano e um dia depois

Pouco ou nada havia mudado. O país continuava atolado numa guerra civil que o comia por dentro e lhe impedia o desenvolvimento num mundo que não esperaria por ele. O Partido Conservador continuava no poder, agarrado a ele de unhas e dentes, e o Partido Liberal continuava, como podia, a sua luta contra aquele, em prol do povo, da democracia e da liberdade.

Nem a tomada de posse de Paco Martinez como Presidente da República, que entretanto havia ocorrido, constituía propriamente uma mudança ou novidade. Não havia ninguém, conservador ou liberal, no canto mais recôndito da província mais distante, que não soubesse, há muito, quem ditava verdadeiramente os destinos da guerra e do país.

Não que o momento não tivesse sido festejado, com a devida pompa e circunstância, por todos aqueles que com ele se congratularam, evidentemente. Ou que não tenham ocorrido, aqui e ali (principalmente nos meios rurais), comícios e marchas de protesto (reprimidas à coronhada) contra a 'fantochada eleitoral'. Mas acabou por não passar, na sua essência, de apenas mais um acto teatral, sem grandes efeitos práticos.

Pouco ou nada havia mudado. Nem mesmo para Paco. Nem o conflito exterior, ao qual não tinha conseguido pôr um fim, apesar da constante eminência da vitória absoluta dos Conservadores, nem o interior, que lhe atormentava o espírito com a sua ambiguidade, e não o deixava alcançar a paz que tanto desejava.

Estava convicto de que após ocupar o cargo mais alto da Nação (e do Partido), conseguiria deixar para trás as loucuras do passado recente, renegando por completo às escapadelas que constituíam uma autêntica traição ao seu compromisso para com o Partido que tudo lhe tinha dado. Mas após um breve interregno, voltaram as missivas codificadas de Ramos - a sua contraparte no campo Liberal, mas também um dos seus mais antigos e queridos amigos - ás quais não soube (não quis?) resistir, e que o levaram novamente aos terreiros liberais, onde, sempre disfarçado, e sob a protecção discreta de Ramos, continuava a procurar aquele algo que não conseguia definir, mas que só ali parecia conseguir encontrar.

Pouco ou nada havia mudado. Muito menos o calor, que chegava a meio da manhã e se ia deixando ficar, pela tarde fora, para a noite, de onde só abalava às primeiras horas da madrugada. Não mudara em nada também o fulgor das fiestas, nem o efeito que todo o seu ambiente tinha sobre Paco, embora fosse evidente, para Ramos, o esforço que fazia por ser mais contido nos actos e nas palavras.

Para Paco, aquela aparentava ser, afinal, uma noite igual a tantas outras, apesar do rumo que as suas últimas conversas com Ramos haviam tomado, que apontavam numa direcção que ele não conseguia determinar-se a seguir. A euforia que se apoderava sempre dele naqueles momentos havia-o feito esquecer o verdadeiro propósito da sua presença ali, naquela noite, e só quando deu pela ausência de Ramos é que se permitiu recordá-lo.

Contornado a multidão, dirigiu-se a uma das pequenas casas baixas ao fundo do páteo, tentando passar despercebido no meio da confusão, onde provavelmente, mesmo sem disfarce, e com o seu uniforme de General, não se conseguiria fazer notar. Abriu a porta com mil cuidados, olhando discretamente para todos os lados, por forma a se assegurar que ninguém reparava nele (e ninguém reparava mesmo), e esgueirou-se para dentro. Ramos estava sentado num dos dois bancos de madeira que, juntamente com uma velha mesa branca de madeira e um armário alto, constituíam a única mobília da pequena sala. Não se levantou à sua entrada, apenas virou a cabeça na sua direcção e fitou o amigo.

- Demoraste o teu tempo.
- Desculpa... um imprevisto...
- Um imprevisto... eheheh... de olhos verdes e longos cabelos negros. Já ouvi chamar muita coisa à Bela, mas nunca 'imprevisto'.
- Apanhaste-me - disse-lhe Paco, a meio de uma gargalhada, permitindo-se, novamente, descontraír - Confesso...
- Deixa lá isso para os teus padres - interrompeu Ramos.
- Caramba, que humor! - ripostou, voltando a sentir a tensão a apoderar-se do seu corpo.
- Desculpa lá, se não consigo ser sempre o folião que esperas de mim - disse Ramos, levantando-se de forma tão brusca que até o banco tombou, dirigindo-se depois para o extremo oposto da sala.
- Pronto, já percebi... Não há nada que se beba?
- És capaz de encontrar qualquer coisa nessa gaveta - respondeu, acenando na direcção da gaveta da mesa.

Ao abri-la, Paco empalideceu e engoliu em seco. Apesar de nunca a ter visto antes, reconheceu imediatamente 'La libertadora', o famoso revolver de Ramos, um magnífico Colt incrustado a madre-pérola, que lhe teria sido oferecido por Zapata em pessoa. Ficou imóvel, a observar a arma, perdido num turbilhão de pensamentos, sem saber o que fazer ao caír finalmente em si.

- Vamos, pega-lhe. Sabes ao que vieste... - murmurou Ramos do outro lado da sala.
- Ramos...
- Vamos, homem. Deixa-te de coisas.
- Não posso... não consigo... - respondeu Paco, ao mesmo tempo que se apoiava na mesa, numa tentativa de se proteger da vertigem que dele se apoderava.
- Claro que consegues. Tu consegues tudo, lembras-te?
- Não é bem assim. Há coisas que...
- Pelo teu sonho! Consegues tudo! Fazes tudo! - inrrompeu Ramos, levantando a voz, e avançando na sua direcção.
- Pára! - pediu-lhe Paco, roucamente.
- Páro sim. Mas só de uma forma. Já to disse. Já to expliquei.

Ramos percorreu a curta distância que o separava de Paco e abriu um pouco mais a gaveta, retirando o revólver, e empunhando-o entre ambos. Num movimento fluido, virou a arma ao contrário, e, segurando-a pelo cano, ofereceu a coronha a Paco.

- Pediste-me para parar. Com os 'convites' para as nosssas festas, com os sermões, com a minha 'inútil demanda' de te trazer para o nosso lado - disse-lhe, sem deixar de lhe estender o revolver - Não o consigo fazer. Da mesma forma que tu também não consegues deixar de responder, de vir ter comigo, connosco, de brindares e dançares com esta gente, com a TUA gente, o teu povo. Tal como não consegues deixar de questionar as tuas opções...
- Não há qualquer dúvida aí! - interrompeu Paco, recuperando a firmeza da voz.
- Oh, claro que não! Não há dúvidas, apenas certezas, não é? Que fazes então aqui? Como classificas o que tens aqui sentido e vivido ao longo de todo este tempo?
- Eu sei bem o que quero! Onde quero chegar! Apenas...
- Apenas nada. Apenas tens dúvidas. E se duvidas não podes ter certeza.
- Só quero cumprir o meu destino - esmoreceu Paco, apoiando-se novamente na mesa.
- Então pega-lhe, vá. Liberta-te! E liberta-me a mim também...
- Não consigo, Ramos. Não consigo. Sei que tenho de o fazer, mas...
- Mas...
- Sempre que tenho a oportunidade... de vos calar de uma vez por todas... de vos esmagar...
- Eu sei. Há sempre qualquer coisa, um pormenor que escapa, um 'acaso', que permite que continuemos a viver, que continuemos a nossa luta... adiando o teu sonho.
- Não te sei explicar porque não o consigo fazer - disse-lhe Paco, endireitando-se finalmente e encarando o amigo.
- Percebo. Ou penso que percebo. Não interessa. Pega! - disse, endireitando novamente o braço, que entretanto tinha deixado cair ao longo do corpo.
- Não o posso fazer, Ramos. É melhor ir-me... - respondeu, virando-se na direcção da porta.
- Não! Faz o que sabias que vinhas fazer! - disse-lhe Ramos, segurando-lhe o braço.

Paco parou e voltou a encarar o amigo. Olhavam-se nos olhos, que ambos sentiam à beira de transbordar. Ramos soltou-lhe o braço, e com as duas mãos envolveu a coronha da 'Libertadora' com a mão direita de Paco, encostando a ponta do cano ao seu próprio abdómen. "Na morte como na vida?", sussurrou-lhe ao ouvido, enquanto o envolvia com o seu forte abraço.

Pouco ou nada havia mudado. As festas liberais continuavam a ser o palco de alegria e exuberância que sempre tinham sido, bem como de excessos. De rum, principalmente, que por sua vez levavam a excessos de comportamento, que os organizadores e responsáveis tentavam, em vão, eliminar. O pior de todos seria, talvez, o disparar frenético de armas para o ar, um péssimo hábito, que se havia tornado também, infelizmente, ex-libris das suas festas, provocando sérias dores de cabeça aos líderes liberais. Não só pelo dispêndio de preciosas munições que representavam, mas principalmente pelos acidentes, muitas vezes mortais, que invariavelmente ocorriam.

Os diparos acompanhavam assim o ritmo da música e quase que se confundiam com a mesma, contribuíndo para o clima de algazarra generalizada que tomava conta das festas antes do efeito secundário do rum entrar em campo, mais tarde na noite.

De modo que ninguém, no auge daquela noite festiva, se preocupou (se é que sequer deu por ele) com o disparo que se fez ouvir da casa branca ao fundo do páteo, onde, quase um dia depois, viria a ser descoberto o corpo sem vida de Ramos.

Pouco ou nada havia mudado. Mas ia, finalmente, começar a mudar...