O cerco
Do alto da torre de menagem, onde tinham acabado de hastear a bandeira, os dois guardas contemplavam o ondulado que as dunas formavam no horizonte, e contra o qual se recortava a figura solitária de um cavaleiro. Apesar da distância que os separava, e da pouca claridade que o sol acabado de nascer trazia ao novo dia, nenhum deles tinha a mínima dúvida em relação à sua identidade.
Desde o dia anterior que o sabiam lá, a aguardar a resposta do Conselho da Razão e da Lei. Agora que já a tinha, que iria fazer? - indagavam-se em silêncio. Pesarosos, receosos da resposta, viraram-lhe costas e desceram para junto dos seus camaradas, que pelas ruas da cidade fortificavam posições, barricavam portões e faziam por conter a revolta das pequenas multidões que aqui e ali se juntavam a protestar contra a decisão.
"Bandeira bifurcada. As lanças... " - pensou, com algum desapontamento, ao observar a bandeira que ao longe se agitava ao sabor do vento forte que, nesse dia, insistia em prolongar a sua estadia nas areias do deserto um pouco para além das horas do seu habitual horário nocturno.
O Conselho recusava a sua proposta, portanto, e, ao fazê-lo, escolhia a continuação da guerra. Estava realmente desiludido. Não que acalentasse grandes esperanças em relação a outra resposta, mas o que não esperava, de facto, era que esta chegasse tão rapidamente. Não considerava tempo suficiente para avaliar convenientemente a situação, nem tudo o que estava em jogo. Esperava mais, desses homens que se auto-intitulavam de Sábios.
Pelas ruas da Cidade, o povo já não sussurrava, em medo, o seu nome: gritava-o. Aclamava-o. Desejava-o!
Os relatos das suas vitórias audazes, da coragem e determinação do seu espírito aventureiro, haviam despertado na população um estranho fascínio pela sua pessoa, ao mesmo tempo que a fama da sua liderança justa e benevolente haviam acalmado os receios em relação ao seu provável destino como conquistados.
Eram cada vez mais frequentes os relatórios que lhe falavam de como grupos de cidadãos exigiam ao Conselho uma mudança de posição, tomando por vezes atitudes mais drásticas como a abertura dos portões da cidade, ou a tentativa de fuga sobre as muralhas, na calada da noite.
Sentir a população do seu lado tinha-lhe renovado a esperança numa resolução pacífica para o conflito. Esse novo alento levara-o a escrever (novamente) aos Conselheiros, explanando a sua visão dos acontecimentos - do que havia sido, do que era, e do que poderia ser - reformulando as condições que impunha para uma capitulação da Cidade que pretendia sua. Tinha tomado como bom augúrio o próprio facto de o seu mensageiro ter retornado com vida, tendo presumido uma vontade sincera de negociar.
Mas, afinal... Enganara-se. Sem sequer uma contra-proposta, os portões voltavam a fechar-se e o clarim da guerra voltava a soar na Cidade. Conquistara-lhe o Coração, mas não a Mente, que teimosamente insistia em permanecer fiel à potência estrangeira.
Atrás de si, escondido pelas dunas do olhar vigilante dos guardas da Cidade, o seu exército aguardava as suas ordens. Sabia que apesar de exaustos e desmoralizados pela duração do cerco, o seguiriam até ao fim do Mundo, mas questionava já o seu direito de lhes o exigir, depois de tudo o que por ele haviam suportado. Mereciam o descanso, outra vida. Uma vida!
E a própria Cidade... A sua Cidade... Angustiava-o o muito que ainda teria de sofrer com o prolongar deste cerco que durava há anos, e com as inevitáveis investidas que realizaria na tentativa de lhe quebrar, de vez, as defesas.
Os pratos da balança estavam definitivamente desiquilibrados, e o possível preço a pagar pela perseguição do seu sonho começava a parecer-lhe alto de mais. Mas poderia ele desistir, agora que se sentia tão perto de o concretizar?
"Vamos... para campo." - sussurou ao ouvido de Ghibli, o mais famoso de todos os puros sangue do deserto, negro como a noite e veloz como o vento com o qual partilhava o nome.
Lutando contra o sentimento de urgência que lhe suscitava a possível chegada, a qualquer instante, de reforços para a guarnição da Cidade, decidira que iria descansar. Talvez até divertir-se um pouco. Necessitava de acalmar o espírito e a mente, por forma a melhor refletir na decisão que, inevitavelmente, teria de tomar.
"In sha Allah..."
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