::quarta-feira, dezembro 20, 2006

Cenas

Fazia já algum tempo que ali estavam, na esplanada do costume, de volta dos caracóis e das cervejas, a pôr a conversa em dia. Entre os dois já tinham despachado uma bandeja, e pelo andar da carruagem a segunda não haveria de tardar, a par da terceira rodada de imperiais.

Amigos desde que se lembravam, Jorge e Bruno tinham decidido instituir estas suas 'sessões de degustação' periódicas, como forma de se compensarem pelo afastamento a que o dia-a-dia da vida adulta os obrigava. Longe iam os tempos em que se encontravam todos os dias na escola, ou (quase) todas as noites nas suas saídas, afinal.

Das chatices nos respectivos empregos, às desventuras do clube do coração, passando pelos últimos filmes em cartaz, já praticamente todos os assuntos tinham subido a palco naquele fim de tarde, mantendo-se aquele que ambos sabiam ser a estrela do dia teimosamente nos bastidores.

Farto de andar aos círculos em redor da questão - o que o fazia sentir-se um pouco como um abutre, a descer, vagarosamente, lá do alto, em direcção à presa moribunda - mas sem real vontade de falar no assunto, Jorge acabou por sair-se com uma - Pá, tu que tens a mania que percebes dessas coisas, diz-me lá se 'braços da cadeira' é uma metáfora?

- Bolas, pá! Tá difícil, isto hoje! - respondeu-lhe Bruno batendo com a mão na mesa, no seu habitual tom 'mais efusivo do que o desejável', que, como de costume, fez virar algumas cabeças na sua direcção - Deixa-te mas é de tretas e diz-me de uma vez por todas no que é que deu a vossa conversa. Ou acabaste por não a ter? Nem me digas uma coisa dessas!

- Boa, assim é mais fácil, conto a toda a gente ao mesmo tempo... - disse Jorge, visivelmente envorgonhado, deixando-se afundar na cadeira.
- Vá, pronto. Foi sem querer. Sabes como é... - desculpou-se o amigo, divertido, inclinando-se sobre a mesa na sua direcção, quase sussurrando, como um conspirador - Que te disse ela, afinal? Desembucha...

Endireitando-se na cadeira, Jorge chegou-se também para a frente, e, no mesmo tom conspiratório, acabou por revelar: - Disse-me que gostamos demasiado um do outro para ser só amigos e por isso...

- YEAAAAHHHH! All right!!! - interrompeu-o Bruno num grito, saltando da cadeira, e fazendo parar as pessoas que passavam na rua - Menina! Mais uma rodada, faz fav....
- Shhhh! Tá quieto, pá! Senta-te. Não é nada disso. - interrompeu-o Jorge por sua vez, enfiado quase debaixo da mesa, mais vermelho que um tomate - Não é nada disso...
-Ah!? Não? Er... Então? - perguntou-lhe Bruno surpreendido, sentando-se enquanto confirmava gestualmente à empregada o pedido da nova rodada.
- Então... então que ela já tem com quem 'não ser só amigos', né?
- Pois. Certo. Mas pensei que... enfim... - respondeu Bruno, meio atrapalhado.
- Pois, também eu, mas... - disse Jorge, encolhendo os ombros.
- Então e agora?
- Agora... agora nada. Nada de nada. Gostamos demasiado e tal, por isso nada.
- Que cena! Olha que não estava nada à espera disso, pá - disse-lhe Bruno, arrebitando novamente com a chegada da empregada e da nova bandeja de caracóis - Que cena...
- Eh... eu não sei... acho que já estava mais ou menos à espera, mas...
- Sinceramente - disse Bruno - nem sei bem o que é pior.
- Pior? Como assim? - perguntou Jorge.
- Sim. Se isso ou a outra cena... Ena! Estes caracóis estão mesmo no ponto! Prova, vá! - ordenou, empurrando a bandeja na direcção do amigo.
- Diz lá, pior que quê? Qual cena? - voltou a perguntar Jorge.
- Aquela cena do 'gosto muito de ti mas só como amigo' - respondeu Bruno, entre dois caracóis.
- Ah, isso. Pois, também não sei - disse Jorge, olhando desconsolado para os caracóis à sua frente - Se bem que essa sempre fazia algum sentido, não sei.
- Entre uma e outra, venha o Diabo e escolha.
- Pois...
- Não vais comer? - perguntou Bruno apontando para a bandeja - Não sei se me oriento sozinho com isto, pá.