::segunda-feira, julho 12, 2004

Barbaleta

"A vida de uma barbaleta é uma vida amaldiçoada".
Foram estas as primeiras palavras que Arconciel Wings ouviu da sua Avó, Velha Wings.
Foram, aliás, as primeiras palavras que ouviu de qualquer ser, barbaleta ou outro, pois haviam sido proferidas no preciso momento em que Arconciel abandonou o estado larval e adquiriu o seu belo corpo de barbaleta.

No momento não percebeu, obviamente, o significado de tais palavras, mas estas ficariam para sempre gravadas na sua memória, tal como ficavam gravadas nas memórias de todas as jovens barbaletas em cuja cerimónia de renascimento a Velha Wings estivesse presente. Era o seu dever como matriarca do Clã Wings presidir a todas as cerimónias, e a ela cabia a responsabilidade pelo impressionamento - não confundir com impressão - da Lei da Vida na própria alma de cada recém-renascido.

O significado preciso de tal afirmação veio a compreendê-lo mais tarde, ao aprender os versos da Canção do Destino das Barbaletas, ensinada a todas as jovens barbaletas desde a infância, com o propósito de as alertar para a maldição que sobre elas pairava.

"Náscemos às barbaletas
Dazásas pretas, da fitázuli.
Avoamos até às lâmpdas,
Quêmêmos ázázas,
Ná podemos másvoari"

Com efeito, eram raros os machos adultos que, mais tarde ou mais cedo, não se deixavam seduzir pelo encanto das lâmpadas, seres diabólicos que, quais sereias, atraíam os barbaletos para a destruição, com a sua luz brilhante e chamativa, e com as suas belas e sensuais vozes (que provocavam, segundo alguns testemunhos, uma estranha sensação de relaxamento excitante).

Embora o seu brilho fosse igualmente visível para as fêmeas, a sua voz era algo que estas nunca tinham escutado, pelo que atribuíam a sua existência aos delírios do vício que aprisionava os seus irmãos, filhos e maridos, e ao qual, estranhamente, elas próprias eram imunes.

Ao atingir a idade maior Arconciel não foi excepção à regra, e na sua alma nasceu e cresceu o fascínio por esses estranhos seres.

Era uma lâmpada nova, acabada de instalar. De uma classe obviamente diferente das outras. Mais duradoura, diziam uns. Mais económica, diziam outros. Mais aerodinâmica, diziam os que já haviam aventurado alguns vôos rasantes.
Nada disso lhe interessava. Sabia apenas que a sua luz era a mais bela que alguma vez tinha visto. Ao mesmo tempo potente e suave. Doce.
Sentia a alma estilhaçar-se em mil pedaços sempre que a via, tal era a sua beleza, tal era a força com que lhe tocava o coração.
Não tinha reação. Não tinha palavras.

Tinha, isso sim, medo. Medo de olhar para ela. Medo de se aproximar.
As rimas da infância continuavam bem presentes, tal como a memória dos amigos perdidos
para o calor destruídor. Durante muito tempo esse mesmo medo, essa cobardia (sensatez?), foram mais fortes que o fascínio, que a atração exercida, e mantiveram-no à distância.

Mas, e à semelhança das palavras da Velha Wings, também a sua imagem ficara gravada na sua mente, e a vontade de voar ao seu encontro aumentava de dia para dia.
Para a contrariar afastou-se dos amigos, já completamente perdidos na luz; experimentou técnicas zzzen, ensinadas por muzzkitos vindos do distante Kawai; chegou inclusivé a frequentar as colónias de pirilampos, na busca de outras luminosidades.

Todos estes artifícios, aliados ao tempo e à maturidade entretanto alcançada, surtiam o efeito desejado, e, a pouco e pouco, Arconciel começou a sentir-se suficientemente forte para enferentar a luz e lhe resistir. Qual não foi a sua surpresa quando, no momento escolhido para o confronto, percebeu que a luz da bela lâmpada já não era tão forte nem tão pura como outrora fora. Se tal facto resultava do desgaste natural de qualquer lâmpada ou da nova fortaleza do seu carácter, não o sabia.

Apenas lhe interessava fazer o teste final: voou, ao mesmo tempo temeroso e convicto das suas capacidades, até perto daquela que sempre fora a sua luz.
Não sentiu qualquer calor mais forte que aquele de um dia normal de Verão. Não sentiu qualquer amarra inquebrável que não o deixasse escapar. Sentiu, no entanto, ouviu, a sua voz calma e triste. A princípio assustou-se mas, acalmando-se, acabou por responder às suas perguntas, e por colocar as suas próprias questões. Conversaram durante muito tempo e, à medida que o tempo passava, Arconciel sentia-se cada vez mais seguro de se ter libertado da maldição.

Deixou-a ao princípio da manhã, sem qualquer esforço, e voltou para casa.
As noites que se seguiram foram encontrá-lo novamente junto da sua lâmpada, sempre esvoaçando de cá para lá em seu redor, entretido em conversas que se foram tornando cada vez mais informais e intímas.

Depressa a sua lâmpada voltou a ocupar todo o seu pensamento, e tornou-se seu único desejo estar junto dela, absorver a sua luz, ouvir a sua voz. Continuava a acreditar, no entanto, que tinha superado o feitiço das lâmpadas e que a qualquer momento seria capaz de a deixar, de a esquecer.

Só quando alguns amigos o alertaram para o escurecimento das suas asas, para o seu humor irritadiço e para outros sintomas típicos numa vítima da maldição, é que finalmente aceitou a realidade: tinha caído na armadilha das lâmpadas.

Sem que disso se tivesse apercebido, a luz incialmente fraca tinha vindo a aumentar de intensidade, a par do calor que tudo consumia e que já começara a deixar marcas vísivies no seu corpo. Percebeu também que a força de vontade que julgava ter não passara de uma ilusão, pois mesmo naquele momento tudo o que queria era voar para junto da sua lâmpada, independentemente das consequências. Ouvia a sua voz a chamá-lo, dentro de si, no seu próprio coração, e sabia que não lhe iria resisitir.

Ainda assim, num derradeiro momento de lucidez, e com a pouca força de vontade que lhe restava, dirigiu-se para aquela que sabia ser a sua última esperança: a Velha Wings!