::quarta-feira, outubro 05, 2005

O peão

Estava preocupado. Apreensivo. O embate aproximava-se e ainda não sabia ao certo por qual dos lados iria combater. Era um homem livre, embora de humildes posses, e não devia lealdade a ninguém. Pelo menos a nenhum dos senhores que empurravam o povo para o campo de batalha. E isso dificultava-lhe a tarefa, ao contrário de tantos outros que se limitavam a seguir a bandeira do castelo que os abrigava.

Mas tinha de escolher. Sentia que para além de um direito que a sua estimada liberdade lhe garantia, era um dever seu fazê-lo. Não lhe agradava a ideia de, chegada a hora, ficar em casa, de braços cruzados, à espera do resultado de uma batalha que outros haviam de ter travado por si.

Mas era complicado. Em todas as facções encontrava alguém sobre quem pairavam nuvens negras. Não conseguia tomar partido.

O Conde, antigo senhor das terras onde habitava, por exemplo. Tinha partido, há anos, para as Cruzadas, deixando para trás, com elevado espírito de sacríficio, um dos condados mais prósperos do Reino, apenas para caír parcialmente em desgraça perante o Rei, devido a suspeitas entretanto levantadas de sonegação do tributo régio.

Voltava agora, à cabeça de um pequeno exército, determinado a reconquistar as rédeas do Condado das mãos daquela a quem aquelas tinham sido confiadas, e que agora não fazia tenção de as soltar, a Condessa ComSorte.

Por um lado não lhe agradava a ideia de se juntar às fileiras do Conde, ao levar em conta todos os antigos e novos rumores e supeições. Mas, por outro lado, encontrava nessas mesmas fileiras gentes de reconhecida fibra e moral, a quem dava todo o seu apoio (embora encontrasse também, desgostoso por ver as associações de ocasião que se haviam criado, gente de baixo carácter e que lhe mereciam os comentários mais vilipendiosos). Apoiar uns significava, de alguma forma, por muito indirecta que fosse, apoiar o outro. Não lhe agradava.

Na outra facção, a da Condessa, deparava-se com cenário semelhante, embora com posições invertidas. Apesar de estar disposto a apoiar as suas pretensões aos Paços, encontrava no fidalgo que ela havia colocado no comando das hostes do seu cantinho do Condado, alguém em quem, há muito, perdera toda e qualquer confiança, e que nunca poderia voltar a seguir. Mais uma vez, e também aqui, apoiar uma, representaria um apoio tácito a outro, e também isso não lhe agradava.

Quem haveria ele então de apoiar? Ao lado de quem lutaria?
Só lhe restavam os pretendentes que pouco ou nada conhecia.

Porque tinham de acontecer estas coisas aqui, no seu pedaço de terra? Porque não podiam passar imunes a estas situações? Porque não se limitavam estas a acontecer nos cantos mais recônditos do Reino?

Tanto quanto sabia e ouvia dizer, por todo o Reino existiam situações semelhantes, um pouco por todos os condados e ducados. Falava-se de uma Duquesa, que após andar fugida à justiça real no além-mar, voltara triunfante, e transportada em ombros pelos seus súbditos, se lançara à (re)conquista do seu feudo. Ouviam-se rumores sobre um Barão, que havia sido convidado nos calabouços do Rei, e que ainda com o pescoço parcialmente no cepo, arregimentara um batalhão para retomar o seu trono. Cantavam os bardos, nas tavernas e praças, sobre um outro Conde, que tomava de assalto o condado de outrém, após uma breve digressão como jogral e bobo, pelas quintas do Reino. Onde iria este parar, nas mãos de gentes assim?

Não se considerava o peão um homem impoluto, ou acima de qualquer suspeita, nada disso. Tinha os seus esqueletos no armário, como toda a gente (excepto, talvez, os Príncipes Encantados montados em belos corcéis brancos) e não seria ele o primeiro a atirar a primeira pedra, como Nosso Senhor Jesus Cristo havia comandado.

Apenas estava farto de ver sempre os mesmos a aproveitarem-se da inocência e ingenuidade do povo. Ao menos que se desse a vez a outros. À máxima inglesa 'Better the devil you know', preferia (no caso em questão) a bem nacional 'Ou há moral ou comem todos'.

Tinha de polir o escudo e armadura, e afiar a espada. Embora ainda não se tivesse decidido, tinha uma certeza: não havia de ficar de lado.