Queres jogar?
Perguntei-lhe finalmente, ao fim de algum tempo a observá-la a andar de um lado para o outro, para dentro e para fora do quarto, nua, e à procura da roupa para se vestir.
- Jogar? Achas que sim? Já viste as horas? Estou atrasadíssima! - respondeu-me, sem sequer parar, ou olhar para mim.
- Atrasadíssima? Às duas e meia da manhã? Para quê? - retorqui, tentando dar às palavras um tom ingénuo.
- Ya! Para quê!? Já devia estar em casa há que tempos, como bem sabes. - gritou-me da casa de banho.
- Ah, claro. Como é que pude esquecer-me disso? - murmurei, enquanto me deixei deslizar novamente para debaixo dos lençois.
- Disseste alguma coisa? Viste os meus slips?
- Queres jogar? - voltei a perguntar-lhe.
- Mas jogar a quê? Escondeste-os, foi? Não tenho tempo para jogar às escondidas!
Reapareceu no quarto com a saia já vestida, camisa na mão, e com ar de quem se está a tentar lembrar do que se estará a esquecer.
- Não é às escondidas... - disse-lhe, acenando-lhe com os slips.
- Hum... Ao quarto escuro? À apanhada? À gata e ao rato?
Deixando cair a camisa no chão, subiu para a cama, pelo lado oposto ao meu. Avançou de gatas, olhando-me de forma provocadora, puxando o lençol para si, avaliando, à medida que avançava, a distância que a separava dos slips que continuava a acenar à sua frente. Antes que esboçasse qualquer gesto para os agarrar, no entanto, atirei-lhos à cara, e voltei a cobrir-me com o lençol.
- Ai! Parvo! Pensei que querias jogar...
- Não era a 'isso'. - disse-lhe.
- Ah não? - perguntou, vestindo os slips apressadamente - Então era a quê?
- 'Match point'. Queres jogar?
- O jogo de computador? Estás a passar-te?
Não pude deixar de soltar uma gargalhada ao ouvir aquela resposta. Nunca me teria lembrado daquilo.
- Conheces? Ou melhor, conheceste?
- Conheci, sim. Porquê? Pensas que só os rapazes é que jogam no computador?
- Eh, sabes como é... - respondi-lhe, meio envergonhado pelo preconceito - ...mas não, não era isso.
- Bom, estava a ver. O meu soutien, também o tens?
Voltei a sentar-me, encostado à almofada, deixando-me ficar novamente a observá-la enquanto o procurava por detrás dos móveis, e debaixo das almofadas e roupa espalhadas pelo chão. Acabou por voltar a apanhar a camisa, que vestiu rapidamente, desistindo, aparentemente, da busca.
- Então? Estás com aquela cara... - sentou-se na borda da cama, e tocou-me na perna - Que jogo é esse que queres jogar, afinal? Ténis?
- Nã... lembras-te do filme, o do Woody Allen? - perguntei-lhe.
- Lembro-me, sim. - levantou-se bruscamente, com aquele ar que sempre punha quando a conversa levava caminhos que não lhe agradavam.
- Estava aqui a pensar que podíamos jogar a isso...
- Ah, sim? E como seria esse jogo? - perguntou, fingindo-se interessada, e observando-me através do espelho, à frente do qual se tinha colocado para dar um jeito no cabelo.
- Eu faço de Scarlett Johansson...
- Tu? - virou-se de novo para mim, com ar divertido - Estás a tentar dizer-me alguma coisa? Depois de tudo, olha que seria uma verdadeira surpresa!
- ... e digo-te que se não contares tudo lá em casa à tua 'cara metade'...
- Não recomeces, por favor - pediu, e o sorriso desapareceu-lhe da cara.
- ... conto eu.
- Ok, recomeçaste. Mas terás sempre que estragar tudo, bolas? - explodiu, retomando, ainda mais freneticamente, a sua busca pelas peças de roupa em falta.
- E tu...
- Tenho os sapatos à entrada, é isso. Vê se dormes, parece-me que precisas. Tchau! - disse, já à porta do quarto, e sem olhar para trás.
- ... tu fazes o papel do bonitão... - continuei, sem obter (e sem esperar) qualquer resposta, elevando o tom de voz à medida que a ouvia desparecer corredor fora, em direcção à porta da rua - ... e tratas de arranjar uma caçadeira! Queres jogar? - gritei.
Deixei-me cair de novo na cama com o estrondo da porta a bater, surpreendendo-me ao dar por mim a pensar no que, na manhã seguinte, e à conta disso, iria ter de ouvir da D.Inácia, a vizinha do esquerdo. Não é que estivesse completamente desprovida de razão, mas... conseguia ser tão chatinha, o raio da velha.
Dei uma volta na cama, e abracei-me à almofada, econtrando por debaixo desta um dos despojos da noite. "Olha!" - pensei - "Acabaste por te esquecer cá do soutien...".
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