No sofá
É no que dá, suponho, andarmos a consultar-nos uns aos outros. Não que tenhamos alternativa, dado que também nós, como qualquer outra pessoa, precisamos por vezes de ajuda, e que, demonstradamente, a auto-análise não é de todo a melhor opção.
No nosso caso, contudo, talvez o devessemos ter evitado. A esta coisa de nos consultarmos um ao outro, isto é. Parecia boa ideia no início, mas tem vindo a revelar os seus inconvenientes, derivados na sua maioria (senão totalidade) da intimidade existente, que, entre outras coisas, nos faz perder parte da objectividade necessária nestas coisas.
Ainda assim não desistimos, e vamos prosseguindo da melhor maneira que conseguimos com este nosso arranjinho, este 'ora agora escutas tu, ora agora escuto eu' que nos vai servindo e ajudando, embora por vezes nos deixemos levar pela preocupação que temos um pelo outro, e pelo 'conhecimento de causa', trocando mais ou menos livremente de papéis a meio de uma sessão. Como é o caso hoje.
- E ela, como está? - pergunta-me, com igual parte de genuína preocupação, e de necessidade de fugir ao tema que a traz cá.
- Está bem, suponho - respondo, secamente.
- Está? Mesmo? - insiste.
- Claro que está. Se não estivesse mudava, não é? - tento mostrar desinteresse pelo assunto, mas sinto que não estou a conseguir.
- Ah... Então tu também estás bem, é isso? Porque também não mudas... - responde-me, lançando o isco.
- Mas ela tem para onde mudar, e eu... - e eu mordi, claro. Resposta errada, sem pensar.
- E tu só não tens porque não queres, porque meteste isso na cabeça e...
- Mas afinal estamos cá hoje para falar de ti ou de mim? - interrompo, tentando soltar-me.
- Quando nos começarmos a cobrar estas horas, talvez me preocupe em usá-las melhor para meu proveito, mas já que é a MINHA hora... falamos do que me apetecer! - diz, divertida, recostando-se no sofá.
- Oh pá! Não seja por isso! Onde é que tenho o livro dos recibos? - brinco, fazendo que o procuro por entre as almofadas.
- A sério! Admira-me que estejas há tanto tempo assim, sem te conseguires libertar disso e...
- Tanto tempo! Também não é tanto tempo assim!
- Não? Faz o quê... dois anos? Três?
- Nã... nada disso.
- Nada disso? Então? Um e meio? Parece-me pouco.
- Fez quatro, no passado Sábado...
- Quatro! - exclama, 'atirando-se ao ar' - É tempo suficiente, não achas?
- É... tempo suficiente. E o teu está a acabar-se! Daqui a pouco está aí o próximo cliente, dos 'a sério' - contra-ataco, endireitando-me e tentando retomar as rédeas da sessão - Porque não voltamos a ti? De qualquer forma no próximo mês trocamos de sofás, e aí poderemos falar de mim tudo o que te apetecer! Hum? Vamos lá.
- Oh eu...
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