::segunda-feira, novembro 15, 2004

O gato preto

Deitou-se no chão, de barriga para baixo, encostado à parede.
Respirou fundo, tentando fazer o mínimo ruído possível.
Do outro lado, do corredor de acesso à cozinha, já não se ouviam os passos do ratinho branco.

Ainda lá estava, disso tinha certeza, pois o seu olfato não o enganava.
Mas tinha parado, por alguma razão.
Talvez o pressentisse.
Talvez esperasse para ver qual seria o seu próximo passo.
Ou talvez não.
Talvez apenas se entretivesse com algum resto de comida do almoço dos donos.

Pormenores.
Estava ali, 'à pata de semear'.
Tudo o que era, todo o seu instinto felino, lhe gritava (mas baixinho, para o ratinho não ouvir) para disparar na sua direcção.
Havia de ser desta que o apanharia.
Vamos! Porque esperava?

Esperava... porque estava cansado.
Cansado das correrias, do jogo, de um desfecho que nunca aparecia.
Cansado de ser sempre ele a perseguir, a procurar.
Não que fizesse sentido ser ao contrário, nada disso.
Afinal, onde é que já se vira um rato a correr atrás de um gato?

O que ele queria era voltar ao tempo em que eram ambos gatos e caçavam por becos e vielas. Ao tempo em que dominavam os quintais e os telhados e faziam por estar sempre juntos.

Até aquela estúpida queda pela chaminé de Solistides.
Ele teve sorte, e conseguiu escapar às faíscas que saltaram dos dedos do bruxo quando este os apanhou aos dois no meio da confusão em que haviam transformado a sua cozinha.

Mas o amigo... bem, o amigo também terá tido sorte, ao que tudo indica.
Tirando os momentos iniciais de confusão, até se adaptou rapidamente à sua nova condição. Ao conforto. À segurança. Ao mimo.
Estava, aparentemente, feliz.
Pelo menos nunca mais ensaiou qualquer tentativa de reverter o feitiço ou de fuga.

Mas ainda brincavam juntos, de vez em quando.
E, nessas alturas, o entusiasmo de outrora, a amizade e o companheirismo, ainda pareciam lá estar.
Mas já não era de todo a mesma coisa.
Porque era sempre, sempre, o mesmo jogo de apanhada.
Um autêntico, e literal, 'gato e rato'.
E era sempre a ele que cabia a iniciativa, claro.

Um ruído! Ah! Eis que se põe novamente a caminho.
Para a cozinha, sem dúvida, para receber um naco de queijo em troca de uma pirueta ou qualquer outro dos seus truques.

Que havia de fazer?
Desistir ou continuar a insistir, perpetuando essa autêntica pescadinha de rabo na boca?
Pescadinha... na boca.
Bolas! 4ª feira!
Dia de peixe fresco no contentor do salão de chá!
Como é que era possível que se tivesse esquecido?
Depressa! Se se despachasse talvez ainda conseguisse apanhar qualquer coisa.
Hum... estaria por lá a gata Maxine?